23 abril 2010

Ficção Cristã - Por Michael Horton

Como observarmos as tentativas de alguns escritores de produzir "ficção cristã"?

O exemplo mais óbvio dessa tentativa está na ficção popularíssima de guerra espiritual. A ficção, como muita ficção "cristã", é unidimensional, com falta de originalidade ou desenvolvimento das personagens. É óbvio que a trama espiritual é mais importante do que a própria história. A não ser por uma visão muito particular do cosmos (luz versus trevas, anjos bons versus anjos maus, com os crentes determinando os resultados) os livros não poderiam permanecer em pé como histórias.

O público cristão tem exigido ficção "cristã", evidentemente a ficção isenta de linguagem forte e cenas mais ousadas, enchendo-a de exemplos saudáveis e exortações sábias. O que os crentes na verdade têm recebido, pelo menos pelo que tenho visto superficialmente da ficção "cristã" que existe por aí, não é nem boa teologia e nem boa literatura. É o que acontece, contudo, quando confundimos criação com redenção: a expressão artística não pode ficar em pé sozinha.; tem que ser justificada por uma "moral da história" cristã, como as fábulas de Esopo. Tem que comunicar uma verdade religiosa e oferecer exortação moral e espiritual — o que a torna singularmente "cristã", mas também é isso que faz dela má teologia e má literatura. Torna o cristianismo em moralismo e não no anúncio da redenção; vira a literatura num sermão ao invés de uma história.

No caso de muita ficção de guerra espiritual, a teologia é claramente sub-bíblica, pois sua cosmologia (visão do universo) tem mais a ver com o dualismo neoplatônico (gnóstico) que mencionamos anteriormente do que com o Deus soberano da história que, em vez de deixar o resultado da história para criaturas pecadoras (inclusive os cristãos), "segundo a sua vontade ele opera no exército do céu e nos moradores da terra. Não há quem possa lhe deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?" (Daniel 4:35).

Pode-se observar como alguns cristãos têm tratado C.S.Lewis e suas histórias das aventuras de Nárnia. Em diversas ocasiões já li ou ouvi críticas de que a obra de Lewis é de "nova era" e beira ao ocultismo, A versão de filme de "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa", me disseram certa vez, leva as crianças à práticas ocultistas. De modo semelhante, relatam que quando o filme "a bela e a fera" foi mostrado num campus de faculdade cristã, algumas pessoas ficaram furiosas porque o filme, disseram elas, promovia o bestialismo.

Concordo que esses exemplos sejam extremistas, mas maioria de nós já encontrou (ou talvez participou) dessa espécie de confusão de gêneros literários. Talvez tenhamos que se cristãos escreverem mitos, especialmente para crianças, as crianças confundirão os mitos com as histórias bíblicas. Mas grandes escritores de ficção, como Lewis, sabem que há grande força nos arquétipos. Um arquétipo representa algo ou alguém — na maioria dos casos é um protótipo. Por exemplo, Adão, ainda que pessoa real na história da humanidade, era um arquétipo de Cristo. Nas aventuras de Nárnia, Aslan é um arquétipo de Cristo. Os leitores podem ter uma impressão mais forte do caráter de Deus e seus caminhos com os humanos pela leitura dessa ficção, que nunca menciona a Deus, a igreja ou qualquer outra coisa explicitamente cristã por nome. Como nas parábolas de Jesus, a ficção não precisa ser explicitamente cristã. Note como cada uma das parábolas de nosso Senhor pode ficar de pé por si mesma como história, e só são vistas como explicitamente cristãs quando ele as explica em termos de não-ficção.

Estou, portanto, dizendo que é aceitável um cristão escrever ficção que não seja explicitamente cristã, desde que suas figuras transmitam verdades cristãs ? Na verdade, embora a boa ficção cristã se conforme com o exemplo de C.S.Lewis, os crentes podem ir além disso sem medo de violarem suas consciências. Podem escrever contos de fadas que nem deixam subentendido coisa alguma especificamente religiosa ou cristã. Podem criar poesia sem puxar por referências a Deus ou às realidades cristãs, porque toda a realidade foi criada por Deus e é sustentada por Deus, quer nós o mencionemos ou não, e quer os leitores creiam ou não nele.

Alguém pode concluir que eu esteja sugerindo que não deve existir nada como arte ou literatura explicitamente cristã, mas isso seria um grande mal-entendido. Escritos teológicos, direção religiosa e oral, todos têm seu lugar como gêneros distintos, mas é sempre perigoso, tanto para a seriedade quanto para o divertimento, quando eles se confundem. Há um lugar óbvio para temas explicitamente cristãos nas artes, sejam elas direcionadas a auditórios gerais ou especificamente cristãs. A Crucificação de Rembrandt pode ser exposta no museu de arte de Chicago ou numa sala da igreja: a arte é excelente, mesmo se alguém não aceita a mensagem que ela transmite, com o próprio artista colocando-se como um dos que crucificou a Jesus Cristo. O Peregrino de Bunyan é em si mesmo excelente peça de ficção, razão pela qual é estuado como um clássico da literatura ocidental (não dentro de uma categoria especial de "ficção cristã") nas aulas seculares. A música de igreja de Vivaldi, Bach, e Händel é mais famosa em muitos teatros de concertos do que na maioria das igrejas de hoje — não por seus temas religiosos, mas pela riqueza da música. Não é errado um escritor tentar convencer seus leitores de seu ponto de vista, como na Cabana de Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe. O escritor judeu Chaim Potok escreve o que poderia ser chamado de "ficção religiosa", mas apresenta o mundo do judaísmo "com as verrugas e tudo o mais", dando ao leitor a impressão de sua riqueza e variedade, do bem e do mal.

Se vamos escrever literatura "cristã" e criar obras de arte e música distintamente "cristãs", deverá ser feito de modo tão plenamente persuasivo intelectualmente e artisticamente que os que não são cristãos serão impressionados por sua integridade — mesmo que eles discordem. Não muito tempo atrás, pedi a um músico não cristão de alto gabarito, que escutasse e julgasse uma peça de "música de louvor". Sem saber a minha própria posição, ele tentou com o maior tato possível expressar que não gostou. Isso devia atrair os não crentes, mas até mesmo seu estilo (que consideramos contemporâneo e relevante) é superficial e vazio na sua imitação da música popular. Outro amigo não crente compara esse estilo às bandas estrangeiras que tentam fazer sucesso imitando o estilo americano de música popular. Quase sempre soa sem graça.

[...]

         

Fonte: Extraído do excelente livro "O Cristão e a Cultura" (páginas 87-90), de Michael Horton, publicado pela Cultura Cristã. Clique aqui para comprar: (http://www.amx.com.br/_model1/produto.asp?produto=001CEP.1.011&emp=cep&cor=cor14&bg1=) .

Este artigo é parte integrante do portal http://www.monergismo.com/.

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